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Uma atriz arrebatadora

A personagem Nardja Zulpério, que empresta o seu nome ao espetáculo em cena no Teatro Casa Grande, é uma figura de seu tempo. Depois de um dia atarefado — passa pela dolorosa experiência de se confrontar com a morte — Nardia chega a seu apartamento e entra em contato com o mundo através de parafernália […]

Postado 31/07/2015 às 20h07 Atualizado em 11/08/2015 às 10h08

A personagem Nardja Zulpério, que empresta o seu nome ao espetáculo em cena no Teatro Casa Grande, é uma figura de seu tempo. Depois de um dia atarefado — passa pela dolorosa experiência de se confrontar com a morte — Nardia chega a seu apartamento e entra em contato com o mundo através de parafernália eletrônica (telefone, vídeo, interfone, controle remoto, microfone). As vozes de fora falam de uma urgência que Nardja percebe no seu cotidiano. Há que procurar suprir a carência afetiva do filho num almoço, preparar-se para a seleção de um comercial, fazer conferência em Belo Horizonte e entregar projeto sobre Nietzsche para um programa na televisão estatal. ”A vida esta cada vez mais exigente”, desabafa Nardja no início de sua maratona existencial, em que a evocação de emoções ancestrais (a mitologia de Eros e Psiquê) e a tentativa de apreender o mundo (Nietzche) se misturam, anarquicamente, no dia a dia dessa mulher urbana que ao se defrontar com a multiplicidade das solicitações assume a complexidade pós-moderna.
O texto de Hamilton Vaz Pereira é trampolim para que uma atriz como Regina Casé, com capacidade histriônica e acurado temperamento teatral, interprete a idéia da urgência. A peça de Hamilton não segue uma estrutura muito linear, já que evolui mais pelo ritmo das palavras do que propriamente pela coerência narrativa. Hamilton Vaz Pereira não estabelece limites para o seu barroquismo verbal (“Estou viciada em ternura.”) e estrutura o texto sobre impulsos marcados pela sucessão de idéias esparsas que atingem um espectro amplo. O autor impõe em Nardja Zulpério adendos que interrompem o fluxo narrativo atrasés de truques como a reversão da ótica narrativa. Nardja deixa de ser alvo da ação para assumir o papel da atriz em plena representação. Ao detalhar a história de Eros e Psiquê, Hamilton Vaz Pereira suspende a ação para deixar sobressair o mito. Talvez não seja um recurso de linguagem ou de estilo – Nardja Zulpério está marcado pela irregularidade estrutural — mas acaba por funcionar cenicamente pela presença catalizadora de Regina Casé.
O diretor Hamilton Vaz Pereira conduz a encenação pela trilha indicada pela atriz: o carisma cênico de Regina Casé. Nardja Zulpério é um espetáculo bem humorado, divertido, em que as quebras de interesse são compensadas peta interprelação dc Regina Casé. A direção cria, com a ajuda de um eficiente cenário de Luiz Zerbini, uma ambientação bem contemporânea com toda a aparelhagem eletrônica funcionando como efeito teatral, tensão e urgência que contagiam a platéia. Mas a encenação repousa sobre a capacidade de Regina Casé em criar uma personagem que converge para a personalidade de intérprete. Regina Casé é uma atriz inteligente, sagaz, com uma capacidade de improviso e de observação que a faz herdeira dos nossos melhores cômicos populares. Como Nardja, a atriz complementa a intensidade do personagem com uma espontânea relação com o público. Regina Casé ocupa o palco com naturalidade, o que permite à platéia ficar à vontade diante de sua atuação (é como se tudo a que assiste fosse muito simples), mas ao mesmo tempo todos os gestos, frases e improvisos são resultados de uma extensa qualificação técnica.

Regina Casé faz, por exemplo, uma cena de platéia em que aproveita a reação do público com inteligência e tempo cênico surpreendentes. Regina Casé, que surgiu com o grupo Asdrubal Trouxe o Trombone, do qual foi uma das fundadoras e sua melhor intérprete, manteve a saudável relação com uma forma de atuar profudamente ligada a um tipo de vida. A sua personalidade de intérprete permite que se reconheça na maneira de estar em cena a força única de uma atriz que tem um código personalíssimo. Mesmo quando o novelo do texto confunde a pIatéia, Regina consegue torná-lo atraente. Nardja Zulpério usa metáforas e mitos para nos confrontar com a própria impossibilidade de transcender a tantas banalidades para se chegar a uma forma de vida menos enganadora. O texto de Hamilton Vaz Pereira sugere essa possibilidade, mas é a atuação de Regina Casé que mostra, com a intensidade de um furacão que a mudança, na vida e no teatro, não é uma utopia. Divertida, inteligente, sensível, Regina Casé oferece uma interpretação arrebatadora.